segunda-feira, 3 de novembro de 2008

Traficados, explorados e invisíveis

Preconceito empurra meninos travestis para redes de tráfico no Sudeste do País

O liberal - Belém do Pará
Edição de 02/11/2008

Texto: AVELINA CASTRO
E JAQUELINE ALMEIDA
Fotos: SHIRLEY PENAFORTE


O adolescente Carlos* não sabia ler ou escrever, mas aos 16 anos deu um salto na vida ao sair da casa onde morava com a mãe e as irmãs, no bairro do Marco, em Belém, para viver em São Paulo. Na maior cidade do País, acreditava, ganharia dinheiro, teria sucesso e o que mais desejava: um corpo feminino. A empreitada foi viabilizada por um travesti adulto, que 'emprestou' R$ 400,00 para a passagem de ônibus e alimentação nos 3.500 quilômetros que separam Belém de São Paulo.

O sonho acabou no dia 17 de junho deste ano, quando, após uma aplicação malsucedida de silicone nas coxas, Carlos não resistiu a uma infecção generalizada. Quando morreu era mais conhecido por um nome feminino e não tinha mais documentos - destruídos por uma cafetina. Para não ver o filho ser enterrado como indigente, a mãe, Ana*, vendeu a geladeira, o liquidificador e o aparelho de som para que a irmã mais velha fosse a São Paulo providenciar um enterro digno. 'Fiz de tudo para trazer o corpo, até pedi em gabinete de políticos, mas custava R$ 10 mil e não consegui', disse a mãe.

O resumo da vida de Carlos conta uma história tão comum quanto invisível no Brasil. Adolescentes homossexuais do sexo masculino estão sendo aliciados, escravizados, explorados sexualmente, roubados e, não raro, mortos por redes nacionais e internacionais de tráfico de pessoas. Os meninos são mortos em brigas de rua, baleados por clientes ou em aplicações improvisadas de silicone industrial, usado para 'criar' seios, coxas grossas e glúteos.

Belém é uma das capitais brasileiras que mais 'fornece' vítimas a essas quadrilhas - e de onde saem também a maioria dos aliciadores, cafetinas e intermediários. Não há estatísticas oficiais, mas nos últimos dois meses, a reportagem de O LIBERAL e 'Amazônia' comprovou que cidades como São Paulo (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Anápolis (GO) estão lotadas de adolescentes paraenses sendo explorados sexualmente. Há informações de que Curitiba, no Paraná, também tem recebido jovens travestis paraenses.

Os primeiros contatos entre os meninos e as redes de tráfico acontecem quase que invariavelmente na rodovia BR-316, estrada federal que liga o Pará ao Nordeste do País, e nas transversais da avenida Almirante Barroso, uma das principais vias de acesso ao Centro de Belém. Nesses locais - lotados de meninos explorados sexualmente - não há um único adolescente que não tenha na agenda o nome e o telefone de um travesti adulto 'que leve para São Paulo'.

Foi na Almirante Barroso que Luiz*, então com 14 anos, descobriu como poderia ter um corpo feminino. No início do ano, incentivado por uma aliciadora, fez sua primeira investida na cidade de Anápolis (GO), onde se submeteu a aplicações de silicone industrial que lhe valeram um glúteo duas vezes maior do que o natural para um menino. Para chegar à cidade pediu carona na rodovia BR 010, a Belém-Brasília; para custear o 'tratamento' com silicone industrial fez programas sexuais todos os dias.

Quadrilha é organizada e cruel

Inquéritos policiais e depoimentos dos próprios adolescentes indicam que as quadrilhas agem de modo tão organizado quanto cruel. Sempre há um contato local ligado a um intermediário - freqüentador da 'ponte aérea' Belém-São Paulo-Rio - que trabalha para um chefe, este sim, baseado nas grandes capitais. Nas ruas de Belém, os meninos citam os prenomes 'Adrielle', 'Fabiane' e 'Karla Ellen', supostamente três travestis paraenses radicados em São Paulo e que hoje estariam no topo do esquema - na última quinta-feira, a reportagem de O LIBERAL e 'Amazônia' tentou contato com parentes de um suposto aliciador, mas no endereço indicado não houve confirmação. João, adolescente traficado aos 16 anos, contou que os meninos 'trabalham' sem descanso, entregam pedágios diários a 'funcionários' de aliciadores e são obrigados a pagar aluguéis altíssimos para morar amontoados em apartamentos sujos e insalubres. O depoimento escancarou uma estrutura de vigilância diária e um esquema de escravidão por dívida e muita humilhação. 'A gente chegava de manhã da rua e não podia descansar. Quem dormia, apanhava de cabo de vassoura', contou o adolescente.

Em 2006, durante uma das investidas da polícia paraense contra o crime, a diretora da Divisão de Atendimento à Criança e ao Adolescente (Data), Socorro Maciel, indiciou sete pessoas em Belém e São Paulo por tráfico, a maioria deles paraenses ou com contatos com paraenses. Entre os acusados, o travesti Paulo Sérgio de Melo Guerreiro foi preso e passou sete meses no Presídio Estadual Metropolitano, na Grande Belém. Apontado como um dos grandes aliciadores paraenses, 'Paulete', como é citada por vários adolescentes, mora hoje na Cidade Nova, em Belém, e nega o envolvimento com os crimes. 'Nunca fiz isso. Fui para São Paulo a passeio e nunca levei ninguém, as pessoas vão porque querem'.
Vítimas de discriminação, os adolescentes ficam mais vulneráveis

O 'vão porque querem' dito pela suposta aliciadora tem muitas explicações e passa longe do que poderia ser considerado uma escolha. As quadrilhas de aliciadores sabem o quanto frágeis podem ser os meninos que percebem ainda criança uma orientação homossexual. As ruas estão cheias de histórias como a do adolescente Antônio*, traficado para São Paulo com 17 anos. Aos 12, Antônio foi expulso de casa quando o pai desconfiou de uma amizade diferente com um vizinho. Na primeira noite fora de casa, o menino dormiu na rua, sozinho, sobre um pedaço de papelão. Cinco anos depois, se viu também sozinho, num ponto da rua Aurora, na chamada 'Cracolândia', em São Paulo. Sem condições de avaliar o que lhe aconteceu, considera 'legal' uma das piores cafetinas de São Paulo. 'Ela dá uma semana pra gente trabalhar sem cobrar nada e também financia silicone e prótese em várias parcelas'. Fábio*, 14 anos, ainda na travessa Antônio Baena, em Belém, deve seguir em breve o mesmo caminho. Franzino, menos de 1,60 m e ainda com corpo de menino, começou a fazer programas sexuais depois que ganhou uma bolsa para um curso de informática. 'A bolsa só paga metade da mensalidade e meu avô não pode me dar o resto e nem o dinheiro da condução, então estou trabalhando à noite', disse. 'Minha mãe não sabe de nada, mas quando eu for ‘de maior’, vou para São Paulo. Lá vou ganhar mais', completou.

Para a psicóloga Sarah Baía, com experiência no acompanhamento de crianças e adolescentes vítimas de exploração sexual e tráfico, o preconceito empurra esses meninos para as redes de exploração. Durante anos de trabalho, ouviu relatos de adolescentes desrespeitados pelos colegas e professores na escola e histórias de rejeição por pais e irmãos, que sentem vergonha. 'Esses adolescentes não conseguem participar de nenhum grupo social que lhes forneça modelos positivos e respeite sua orientação', explica. 'No final, é o aliciador quem aceita esse menino como ele é, que preenche o espaço que deveria ser da família, da escola ou até da igreja, outro grupo onde ele poderia ser aceito, mas não é. Vulnerável, ele não consegue perceber que há um interesse ruim nessa relação. O tráfico é potencializado pelo preconceito'.

REJEIÇÃO

A tragédia de ser rejeitado pela família pode explicar porque Mário* considera uma segunda mãe a prostituta que o tirou da casa dos seus pais, no interior do Pará, quando ele tinha 12 anos. Filho mais novo de um casal de lavradores, foi rejeitado pelo pai ainda criança e abusado por um amigo dos irmãos mais velhos quando tinha 8 anos. 'Eles (irmãos) combinaram com um amigo para que ele me pegasse a força'. Quando fugiu de casa, Mário nunca tinha saído do Pará, mas em um mês se viu sozinho em Imperatriz, cidade do Maranhão, quando a mulher que o aliciou fugiu.

Sem uma casa para retornar e a rejeição do pai e irmãos, apelou a caminhoneiros para chegar a São Paulo, onde passou a tomar hormônios e fez as aplicações de silicone que, de acordo com sua interpretação, lhe valem o corpo feminino e atraente. Três anos depois chegou ao Rio de Janeiro, onde vive até hoje. Aos 17 anos, Mário* conta sua história com uma segurança suspeita. Diz que transita pelo Rio com desenvoltura, tem um caderninho com clientes famosos e há pouco mais de dois meses 'se livrou' de uma cafetina que cobrava alto pelo aluguel. 'Se eu tivesse oportunidade de estudo, trabalho e fosse de uma família estruturada, não teria vindo. Isso aqui não é vida pra ninguém'.

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